sexta-feira, 17 de julho de 2009

Carta aos Políticos

Ilustres senhores e senhoras, homens e mulheres públicos do Ceará;

O movimento pela implantação da Cooperativa Cearense de Teatro é um importante passo rumo ao amadurecimento das práticas culturais em nosso Estado. Representa, num primeiro âmbito, a luta pela sustentabilidade da produção teatral cearense, encarando-a como atividade efetivamente produtiva, organizada, em pé de igualdade para o diálogo com as demais instâncias sociais.
Sua dimensão, entretanto, vai além. Trata-se, sobretudo, de uma contundente mobilização da classe teatral do Ceará, em favor de um novo lugar para o teatro em nosso meio, teatro mais atuante, mais visível, transformador de sua paisagem social, implicado, por isso mesmo, em transformações de políticas públicas que lhe digam respeito.
Em tempos, felizmente, de madureza democrática, acreditamos que essa interlocução com setores políticos ligados à cultura possa hoje se dar de modo direto, parceria construída em mão dupla, uma vez que a classe teatral afirma-se, aqui, como um setor da sociedade civil de fato organizado.
Parece-nos claro, afinal, que o artista é igualmente um homem público, lidando com outros níveis de interesse e patrimônio sociais, de ordem simbólica e afetiva, do mesmo modo indispensáveis para o aprimoramento da vida humana. Finalmente é a condição comum e primordial de cidadão que nos convoca a este encontro, certos de que a consecução de mudanças essenciais em nosso panorama cultural é um gesto de profunda cidadania, e que o teatro é um bem social que não pode ser protelado pelo Estado.

O Teatro e a Cidade:

Neste sentido, cabe lembrar a íntima relação que o teatro nutre com a cidade, desde seu surgimento. Não é sem razão que o mesmo se deu ao tempo em que a democracia firmava-se entre os gregos, pioneiros desse sistema de governo: sobre o palco grego, a cidade era seu grande protagonista, seu tema e seu próprio espectador; e o teatro, em última análise, comparável a um grande ato cívico. Não resta dúvida quanto ao alcance dessa refinada expressão artística: foi o próprio Hipócrates, pai da medicina ocidental, que afirmou que comparecer a um evento teatral correspondia a um ato de saúde, de cura real.
A História é pródiga de exemplos que confirmam que as experiências democráticas mais robustas beneficiaram-se de um panorama teatral efervescente, uma vez que o que o teatro põe em causa, sob a presença real de atores e espectadores, é o próprio mundo. Espécie de grande tribuna afetiva do seu tempo, ou de igreja laica que liga o Homem ao divino do próprio Homem, o teatro traz em si imenso potencial de educação, não do tipo convencional, mas de corpo e de alma, florescendo livremente inteligências. Diante de sua voraz força de vida, e pela vida, é célebre e certa a máxima: “Só o teatro pode mais do que o crime”. Teatro, em resumo, nos inspira vida, suplanta a morte. É tempo, portanto, de o levarmos mais a sério.

Teatro de Pesquisa vs. Teatro de Mercado:

Tal seriedade, entretanto, pressupõe, como em tudo mais na vida, condições adequadas de realização. Se o Ceará, nos últimos tempos, tem organizado boa parte de suas atividades produtivas, não podemos dizer o mesmo quanto à atividade teatral. Desfalque sem dúvida considerável, inclusive do ponto de vista econômico, quando sabemos que cidades como Buenos Aires e São Paulo têm hoje, em sua programação teatral, um destacado vetor turístico e abocanham também, com ela, bom pedaço do entretenimento local.
São exemplos claros de que, ao se transformarem os meios de produção e exibição artísticos, transforma-se junto a própria qualidade de sua arte, que sai do gueto em que se encontrava para o miolo da atenção de seus contemporâneos, afetando tudo em volta.
Tais transformações produtivas, contudo, precisam compreender o teatro como um ato de inteligência e artesania, que não pode submeter-se a predicados industriais, reprodutivos, oportunistas. Arte coletiva, o teatro demanda condições de pesquisa, estabilidade de trabalho, tempo para a criação. Não pode pactuar, portanto, com a lógica de mercado vigente, que, à sua maneira, gerou o seu modelo de teatro, estilo fast-food, rápido no fazer, rápido no consumi-lo. Um teatro, via de regra, para poucos, inofensivo, e, quando muito, alimentado pela celebridade de nomes midiáticos que passam por aqui a fim de somar novas quantias à sua preciosa grife.
Defendemos, sem dúvida, a profissionalização do teatro no Ceará, deixando claro, todavia, que por trás desse desejo está aquele maior de que o teatro possa alastrar-se, tornar-se um segmento forte em nossa sociedade, maduro artisticamente, e muito mais acessível do que o é hoje, o que só será possível por meio de condições profissionais para sua realização. Parece-nos claro, a esse respeito, que são os coletivos teatrais, organizados sob interesses criativos comuns, comprometidos, primeiramente, com as infinitas possibilidades artísticas a serem desbravadas – que devem liderar essa profissionalização, e não a idéia de um teatro para consumo fácil, preocupado, exclusivamente, com seu êxito comercial.

Políticas Públicas

As atuais políticas públicas não vêm dando conta desse tipo de demanda, sendo dever repensá-las amplamente. Os editais, promovidos pelos nossos órgãos culturais, sejam nas esferas municipal, estadual e federal, não são produzidos de modo a pensar a sustentabilidade da atividade teatral, muito menos os coletivos e grupos de teatro. Estes permanecem sem as mínimas condições de trabalho, tais como dispor de uma sede ou mesmo local onde reunir-se, remunerar seus trabalhadores, produzir seus espetáculos e circular com eles.
É de lamentar que, num momento em que faculdades de artes cênicas, felizmente, irrompem por todo Estado, inclusive nas melhores universidades, não se achem perspectivas de trabalho para seus formandos no plano formal da criação artística. Há, sem dúvida, um descompasso entre desejo e realidade no teatro feito no Ceará atualmente.
Sabemos, no mais, que a jurisdição destinada à produção cultural não costuma beneficiar estas paragens. Seu mais famoso bastião, a Lei Rouanet, ao transferir ao domínio privado o investimento em cultura, praticamente excluiu o Ceará de seu alcance – longe que estamos, afinal, do coração do marketing nacional, sobre o qual a famosa Lei, na prática, se assenta. Para liquidar de vez a questão, a notável concentração de renda de nosso Estado faz com que as possibilidades de captação de recursos para projetos culturais se esgotem nos dedos de uma mão – sem qualquer exagero, não são mais do que cinco os grupos empresariais cearenses que aderem à Lei por aqui, obviamente já selados sobre um jogo de cartas marcadas.
Este é o quadro de políticas públicas que precisa mudar. Entendemos que tal mudança, para ser de fato significativa, deve ser pensada em conjunto, poder público com a classe teatral organizada, em um debate sem atropelos e precipitação, mas que seja efetivo e concreto. O assunto, aqui, supera a simples reivindicação de classe: estamos propondo um novo olhar sobre o Estado, em que a atividade cultural torne a ocupar o lugar que lhe é de direito: que é o do encontro, do afeto, da criação, da identidade coletiva.
Lançamos, a seguir, as bases de três propostas substanciais às nossas políticas culturais para teatro, com as quais acreditamos nos aproximar de um futuro melhor e mais justo para o Ceará, saneado pelo ardor e pela presença da arte.

Mapeamento dos Espaços Públicos para Ocupação pelos Grupos de Teatro:

Consiste em, através da sondagem de espaços ociosos e equipamentos culturais da cidade subutilizados (não somente em Fortaleza, mas também no interior do Estado), disponibiliza-los a projetos de ocupação por grupos de teatro.
O mapeamento tanto mais interessa quando consegue descentralizar o circuito vigente de exibição teatral, estabelecendo o teatro nas mais diversas regiões da cidade, sobretudo em bairros populosos, com imenso potencial de público, para os quais a atividade teatral, até hoje, segue ignorada.
Acreditamos, baseado no êxito de modelos semelhantes em cidades como São Paulo, que, ao se estabelecer numa determinada área da cidade, um grupo teatral tem ali fortes lastros para formação de platéia e de artistas, interação com seu meio, sendo inclusive capaz de transformá-lo (o Centro Cultural Bom Jardim depõe favoravelmente nesse sentido). Afora isso, dispondo de uma sede fixa, um grupo teatral encontra melhores condições para o desenvolvimento de sua arte, sua pesquisa, sua produtividade, sua compreensão de mundo.
Como primeiro passo em direção a essa política, propomos a ocupação de um espaço no Centro de Fortaleza, onde possam reunir-se os grupos que sustentam a causa da Cooperativa Cearense de Teatro, emprestando-se o lugar como sua sede provisória, e também como espaço para ensaio, cursos e exibições teatrais.

Sobre a Gestão do Fundo Estadual de Cultura:

O Fundo Estadual de Cultura, decerto uma importante alternativa dentro da política de mecenato privado, deve, entretanto, ser discutido quanto à sua gestão. Não nos parece que a melhor utilização de seus recursos possa se definir apenas pelo poder representativo de nossos gestores culturais, mas que deva sim, ao menos quanto ao teatro, ser pensada em conjunto com sua classe organizada.
Propomos, portanto, à Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, que se abra ao debate sobre a gestão do Fundo Estadual de Cultura, a fim de que tornemos mais precisas, mais adequadas e menos arbitrárias a aplicação de seus recursos.
Propomos, concretamente, a formulação, em parceria entre SECULT e a classe teatral organizada por nosso movimento, de um edital que esteja a contento do tipo de projeto cultural ao qual estamos visando, que possibilite a ampliação da atividade teatral, sua circulação e formação de platéia, a sustentabilidade dos grupos e coletivos teatrais e que enseje à sua profissionalização.

A Criação de uma Lei que Fomente a Atividade Teatral no Ceará:

Para além das necessárias iniciativas a serem tomadas pelo poder executivo, nas esferas municipal e estadual, é absolutamente imperiosa uma política de fomento ao teatro cearense que não se limite a gestões de governos, sendo, na verdade, uma política de Estado. Algo somente possível se consolidado pela forma da lei.
Propomos, assim, ao poder legislativo de nosso Estado e Município, através das suas comissões de educação e cultura e na figura específica de nossos legisladores, o debate em conjunto para a criação de uma Lei que fomente a atividade teatral no Ceará, contemplando a pesquisa, os coletivos teatrais, a estabilidade de suas práticas e demais pontos a serem discutidos posteriormente.
Mais uma vez, é possível afiançar, por meio da experiência de outras cidades, o êxito que um tipo de lei como essa acarreta na sua paisagem cultural, potencializando uma atividade até então obscurecida, que não precisa de muito para revelar o tamanho da sua abrangência: o teatro.
É preciso deixar claro que tais propostas devem ser encaradas como um conjunto de ações que se complementam. Isoladamente, elas não resolvem a questão (mesmo somadas também não. Ainda que já transformem muita coisa ao seu redor). Acreditamos que o momento é propício para sua realização, façamos. O teatro promove interesses coletivos consideráveis. Os quais vêm recebendo, felizmente, da política no país, em nosso Estado e em sua capital, uma maior atenção.
É hora de dar esse passo, em nome de melhores dias para todos.
Evoé!

Fortaleza, 26 de abril de 2009.

Movimento Todo Teatro é Político
Pró - Cooperativa Cearense de Teatro.

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